perfect days, 2046, rotina e solidão
Um pequeno devaneio sobre rotina e solidão que me invadiu na noite de um fim de feriado depois de assistir essas duas obras.
Eu acordo, limpo a placa de bruxismo, escovo meus dentes, tomo meu café, vou pra academia, volto pra casa, tomo meu banho e bebo meu whey de sorvete de morango, mais um iogurte. De terça e quinta, vou pro transporte público pra ir presencial pro meu trabalho. No resto da semana, ligo o computador e começo a trabalhar direto. Sábado eu faço o mesmo ritual matutino, mas adiciono uma ida ao mercado, limpeza do apartamento e um rolê com os amigos. Domingo eu deixo a academia de lado pra descansar e geralmente almoço com meus pais. Segunda começa tudo de novo.
Todo mundo tem sua rotina diária, mesmo que muitas vezes bagunçada ou nem sempre respeitada, mas existe um certo padrão no dia a dia de cada um. Eu acho, né? Não tou na casa de vocês pra saber.
**Atenção: esse post tem possíveis spoilers. Não entrego tanta coisa, com tanto detalhe, mas me perdoa se você não gosta de spoiler. Eu não ligo muito não. Vai que você é desses.**
Assistir Perfect Days (2023), do Wim Wenders, na noite do fim de um feriado prolongado acabou comigo. Pensar que no momento que eu acordasse, a minha rotina safada voltaria ao normal depois de quatro dias de descanso intenso.
Calma aí, eu sou um amante da rotina. Mas essa vidinha capitalista de quem vive em São Paulo nos impõe numa solidão, pressa e ansiedade que me fazem esquecer quase sempre de aproveitar a beleza do mundano e das pequenas coisas que nos rodeiam, até dessas pequenas repetições e padrões do nosso comportamento diário.
Essa mesma rotina que nos mantém sãos e prontos para o dia, também pode ser usada para escapar das coisas e nos manter seguros. Eu vi muita gente falando como esse filme era sobre aproveitar as pequenas coisas da vida, mas o que mais me pegou foi a solidão de Hirayama e como ele usa seus rituais cotidianos para fugir de um passado que não conhecemos, que podemos apenas deduzir com o que nos é apresentado num encontro rápido dele com sua irmã e sobrinha. Aquele Hirayama que acompanhamos no começo do filme, vivendo de maneira repetitiva e mecânica, acaba tendo que passar por novos obstáculos e acaba ajudando conhecidos e recém-conhecidos com pequenos gestos e poucas palavras. Uma balançada nesse seus dias controlados.
Quando Hirayama está no carro ao som de Nina Simone no fim do filme, pra mim é um resumo disso tudo. A vida é meio que esse misto de sabermos curtir nossa rotina, fazer o que gostamos, ouvir nossas músicas, ler nossos livros, visitar os lugares que gostamos, tirarmos nossas fotos, mas também aproveitar e abraçar as tristezas e o inesperado quando chega a hora. Acho que esse inesperado e o sentimento conflitante de não saber como e se continuamos me pegou muito desprevenido nesse filme. Existe tristeza na felicidade e existe felicidade na tristeza. Terminei aos prantos aqui no meu apartamento.
Quando eu me recuperei, ainda decidi assistir 2046 (2004), do Wong Kar-Wai. Desde que eu comecei a acompanhar o trabalho autoral do diretor (depois de ter finalmente decidido assinar o Mubi) eu percebi que ele tem um grande foco na melancolia, na solidão e nas memórias tortuosas de um passado. Percebi também que, assim como Perfect Days, esse filme também traz a solidão e a rotina como temas dentro desse drama romântico.
Chow Mo-wan não superou o seu único e verdadeiro amor, Su Li Zhen e procurando preencher esse vazio, vai se envolvendo com outras mulheres cruzam sua vida, mas nenhuma é Su Li. Uma delas até chega a ter o mesmo nome, mas não é a mesma Su Li que Chow amou. Escapar desse amor intenso do passado se torna sua rotina. Chow se torna um mulherengo.
Com Bai Ling, o romance é mais intenso e constante. Um romance rotineiro para essa dama da noite até que ela percebe que ele nunca a amará de volta como ela o ama. Ele mesmo já dizia que estava emprestado um pouco do tempo dele para ela. Com Wang Jing Wen, surge uma amizade com a moça comprometida com outro que nunca o amará como ele queria. Todas essas situações dão inspiração para suas séries de ficção científica, onde ele acaba refletindo e entendendo o que ele busca na vida, refletindo o próprio passado.
Filmes autorais do Kar-Wai não são fáceis pra mim de colocar em palavras. São sentimentos tão vivos, melancólicos, humanos e trabalhados numa finesse absurda. O homem entende muito as camadas e profundidades dos relacionamentos das pessoas.
Lembrei de uma frase da resenha do meu amigo Henrique de Happy Together (1997): “a solidão é menos evidente quando se tem alguém com quem partilhá-la”. Essa frase é muito potente quando eu paro pra pensar nesses dois filmes. Em Perfect Days, eu e até o próprio Hirayama acabamos esquecendo um pouco da vida solitária dele quando sua sobrinha, Niko, passa uns dias com ele. Chow e Bai Ling, em 2046, passam seus dias tentando ignorar a solidão de cada um, um com o outro e/ou com outras pessoas. Eu me sinto menos sozinho quando estou rodeado com meus amigos e familiares.
A parte que pra mim completa o ponto de todo esse meu devaneio em formato de post que eu estou escrevendo, são duas frases de Chow: “Por que não pode ser como era antes?”, “Nada dura para sempre, de qualquer forma”. Mesmo que a gente tente fugir do nosso passado e tente controlar nosso presente e futuro, isso não está em nossas mãos. Essas frases se encontram com uma frase de Hirayama: “Da próxima vez é da próxima vez. Agora é agora”. O tempo passa por cima de quase todo sofrimento. O tempo cura quase tudo. Será que é verdade isso? Ou tudo continua igual? Ou tudo fica diferente? Será que hoje em dia a gente tem esse tempo todo? Será que estamos prontos pra esperar? Sei lá.